quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Das cousas que se vê sem querer e se diz serem próprias da arte

Das cousas que se vê sem querer e que metem o espectador a espiolhar sem o intencionar faz-se o melhor que a arte tem para dar. São buracos de fechadura sem limites e imaginários que furam e serram a pálpebra mais cerrada. É assim o artista um grande criminoso quando força o seu público a ver o que lá não tem lugar e o leva a ignorar o que se encontra defronte dos seus próprios olhos. Um criminoso de crimes desejáveis, pois claro, muito embora atentem contra a sempiterna realidade.

Já é bem famoso o sorriso de Gioconda e aqui se presta a notória ilustração, que de ser sisuda cessou-lhe o direito e o dito riso não se pode observar, senão auscultar. Mas é de minha opinião que dos menos famosos também reza a história e bastará talvez que um pobre tolo lhes empreste alguma glória.

Por essa razão vos digo que não prestem apenas confiança ao mercado social da arte, mas também ao mercado que tendes confinado nesse estimado crânio vosso e não deixem falecer sem um elogio aquela luz incerta que haveis visto num certo fim-de-tarde, aquele cerrar de dentes homicida no riso dum qualquer palhaço, o embaraço poético dalgum apresentador de telejornal, o andar enigmático e pouco linear dalgum animal que convosco se cruze, o rodopiar majestoso dalguma folha caída em que mais ninguém tenha reparado. Rezo pois porque saibam reconhecer, leitores, o sorriso de Gioconda que há em todas as cousas e não somente nas legitimas dos mercadores de arte. Fique bem claro, que em minha opinião, a arte dos artistas não é de má qualidade mas, pobrezinha, em nada lembra a que os dispensa...

Tenho dito, o mundo é feio e feito do que se vê sem reparar. A arte não é só bela, mas é, acima de todas as outras cousas, matéria daquilo em que se repara sem se ver.

Tenha então o mundo sempre um nome, e a arte não mais que uma parelha de cousas.

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